segunda-feira, 1 de julho de 2013

Mozart e a flauta doce

Mozart certamente usou a flauta doce como instrumento orquestral pelo menos 16 vezes; há outros possíveis usos do instrumento ainda em debate e investigação. Há registros de escrita para partes de flauta doce em três óperas e em várias outras obras - em sua maioria, danças instrumentais para pequenos conjuntos.

Em alguns casos, Mozart escreveu para flauta doce e o registrou em seu próprio catálogo de obras (Verzeichnis aller meiner Werke), porém mais tarde rearranjou ou transferiu, mudando a instrumentação, perdendo-se a parte original de flauta doce. Portanto, indicaremos onde Mozart registrou que compôs para flauta doce porém a parte original se perdeu no arranjo que hoje conhecemos.

O pesquisador alemão Nikolaj Tarasov compilou evidências convincentes de que na obra de Mozart, o "flaut[t]ino" ou "flauto piccolo" não era um instrumento de sopro transversal como temos na orquestra moderna, mas sim uma flauta doce soprano ou sopranino. O estudo está disponível aqui (em alemão), parte 1: http://t.co/KcFCKYerF1 parte 2 [final]: http://t.co/aJV0jIk5hn O flautista Nicholas S. Lander resumiu algumas informações sobre essa pesquisa (em inglês - link).

Para quem não tem familiaridade com a flauta doce e seu repertório histórico, ela teve vários nomes de acordo com o uso, função e transposição. O que hoje conhecemos como flauta doce soprano em dó por séculos foi chamada "flauta de quinta" (fifth flute), por ser lida como um instrumento transpositor em G (como por exemplo no último concerto de John Baston), soando uma quinta acima do escrito (ou soando uma quarta abaixo, se tocarmos numa flauta tenor em dó lendo na mesma transposição).

Abaixo, vamos catalogar as obras de Mozart incluindo a flauta doce, bem como links para gravações e partituras. 


Ópera: uso esporádico


1) KV 620 - Die Zauberflöte (1791) —  Nº 13 "Alles Fühlt Der Liebe Freuden"


Partitura: http://petrucci.mus.auth.gr/imglnks/usimg/a/ad/IMSLP25105-PMLP20137-Mozart_Zauberflote_13_Arie.pdf
Manuscrito pode ser visto aqui: http://javanese.imslp.info/files/imglnks/usimg/6/68/IMSLP97559-PMLP20137-Mozart_-_Die_Zauberfl__te_1791_manuscript__p259-264__Act2_No13.pdf
Audio/video: https://www.youtube.com/watch?v=G8Jt-K09_mI&t=39s

Nome original: "Flauto piccolo" (dobrando violino e flauta transversa)

Extensão escrita: D4-C6, soando uma oitava acima
Nome moderno: Flauta doce soprano / descant

Comentário: "alles wird so piano gesungen und gespielt, als wenn die Musik in weiter Entfernung wäre."

2) KV 366 - Idomeneo (1781) — Nº 17 Coro "Qual nuovo terrore!"


Partitura: http://dme.mozarteum.at/DME/nma/scan.php?vsep=304&l=2&p1=321#p321
Audio: https://www.youtube.com/watch?v=m0lMXlUflM0&t=24s

Nome original: "Flauto piccolo"
Extensão escrita: G4-Db6, soando uma oitava acima
Nome moderno: Flauta doce sopranino

Comentário: somente usada na tempestade do segundo ato, acima das flautas transversais, compondo acordes a três vozes com elas, e fazendo escalas em direções opostas.


Ópera: uso extensivo


3)  KV 384 - Die Entführung aus dem Serail (1782)


Partitura: http://www.dlib.indiana.edu/variations/scores/baj3789/large/index.html
Nome original: "Flauto Piccolo" / "piccolo Flauto"

Nome moderno: flauta doce soprano (descant) utilizando digitações em fá (dependendo da edição, alguns fragmentos seriam melhor interpretados na flauta doce sopranino)

Lista de fragmentos / extensão escrita / soando

  • Ouvertüre
    extensão escrita: F4-F6 [manuscrito]; de acordo com as edições atuais soando C5-D7 escrito oitava abaixo (soprano)
  • Nº 3, Arie (Osmin) "Erst geköpft, dann gehangen" Alegro assai
    extensão escrita: A4-A5 [manuscrito]; de acordo com as edições atuais soando E5-E6 escrito oitava abaixo (soprano)
  • Nº 5b, Chor der Janitscharen
    extensão escrita: G4-F6 [manuscrito]; de acordo com as edições atuais soando D5-C7 escrito oitava abaixo (soprano)
  • Nº 14, Duetto "Vivat Bachus, Bachus lebe"
    extensão escrita: C4-G5 [manuscrito]; de acordo com as edições atuais soando G5-D7 escrito oitava abaixo, acima de duas flautas transversais (soprano, mas: soa melhor tocado na flauta doce sopranino).
  • Nº 19, Arie "Ha! wie will ich triumphiren"
    extensão escrita: G4-D5 [manuscrito]; de acordo com as edições atuais soando D5-A6 [ou D5-D7] escrito oitava abaixo (soprano)
  • Nº 21a, Vaudeville (Osmin) "Erst geköpft, dann gehangen" Alegro assai
    extensão escrita: A4-A5 [manuscrito]; de acordo com as edições atuais soando E5-E6 escrito oitava abaixo (soprano)
  • Nº 21b, Chor der Janitscharen
    extensão escrita: F4-F6 [manuscrito], originalmente soaria C5-C7 (soprano); de acordo com as edições atuais soando G5-D7 escrito oitava abaixo (nota: para ler as edições atuais, tocar na flauta doce sopranino)


Obras de 1771 a 1787

4) Sechs Menuet [Seis Minuetos], KV 104 (61e) (1771/2)
Instrumentação dos trios: flauto piccolo, 2 vl, vc, baixo.
Demais instrumentos: 2 oboés, 2 trompas, 2 trompetes.
Nº 2, Trio: escrito B4-F6, soa uma oitava acima (flauta sopranino) [partitura]
Nº 5, Trio: escrito D5-E6, soa uma oitava acima (flauta sopranino ou garklein) [partitura]
Nº 6, Trio: escrito B4-D6, soa uma oitava acima (flauta sopranino) [partitura]

5) Serenata nº 9, conhecida como: Posthorn Serenade, KV 320 (1779)
Flautino solo (pode ser tocado por um dos flautistas transversais)
Nº 6, Trio I: escrito A4-B5, soa uma oitava acima (flauta soprano ou sopranino) [partitura]


Opera: Idomeneo, KV 366 (1781) (ver acima: uso esporádico em ópera, item 2);

Opera: Die Entführung aus dem Serail, KV 384 (1782) (ver acima: uso extensivo em ópera, item 3);

6) Sechs deutsche Tänze [Seis danças alemãs], KV509 (1787);
Alternativo Nº 3: escrito E5-Bb5, soa uma oitava acima (sopranino ou garklein) [partitura]
Nº 4(sopranino ou garklein) e Alternativo Nº 4 (sopranino): escritos E5-E6 e G4-C6, soa uma oitava acima [partitura]
Alternativo Nº 6 e Coda: escrito G4-C6/D6, soa uma oitava acima (sopranino) [partitura]


Obras de 1788


Kontretanz Das Donnerwetter, KV 534 - "Flauto piccolo" ("flautino" no catálogo de Mozart). Parte perdida em ré maior.

7) Kontretanz: La Bataille, KV 535; "Flauto piccolo" ("flautino" no catálogo de Mozart)
Partes 2, 3, 4 e Marcha Turca: escrito E4-D6, soa uma oitava acima (flauta doce soprano) [partitura] [ouvir]

Sechs Deutsche Tänze [Seis danças alemãs], KV 536 (música incluída no KV 567);


8) Zwölf deutsche Tänze [Doze danças alemãs], KV 567 (incorporou o KV 536)
Flautino/flauttino usado em:
Nº 2, Trio: escrito G4-G5, soa uma oitava acima (soprano ou sopranino) [partitura]
Nº 5, Trio: escrito E5-Bb5, soa uma oitava acima (soprano) [partitura]
Nº 8, Trio: escrito D4-E5, soa uma oitava acima (soprano) [partitura]
Nº 10, Trio: escrito C5-D6, soa uma oitava acima (sopranino ou garklein) [partitura]
Nº 12, Trio e Coda: escrito E4-C6, soa uma oitava acima (soprano) [partitura]

9) Zwölf Menuette [Doze minuetos], KV 568
Nº 12, Trio: Flautino, escrito G4-C6, soa uma oitava acima (flauta doce sopranino ou soprano) [partitura] [ouvir]

10) Canção militar/turca Lied "Ich möchte wohl der Kaiser sein", KV 539
Flauto piccolo (sopranino) durante toda a música, escrita D#5-E6, soando uma oitava acima [partitura] [ouvir]
(Nota: a extensão serve pra garklein, mas o dedilhado não compensa.)


Obras de 1789

11) Sechs deutsche Tänze [Seis danças alemãs], KV 571
"Flauto piccolo" ("flautino" no catálogo de Mozart) nos seguintes trechos:
Nº 3, Trio: escrito F#4-C6, soa uma oitava acima (soprano ou sopranino) [partitura] [ouvir]
Nº 6, Trio: escrito E5-D6 (sopranino ou garklein), Coda escrita A4-F6 (sopranino) soa uma oitava acima [partitura] [ouvir]

12) Arranjo do Messias de Handel, KV 572;
Flauto piccolo (flauta doce soprano ou sopranino) no Nº 9, Pifa [partitura] [ouvir]
Escrito G4-A5, soando uma oitava acima.
Comentário: Spielanweisung: piano + con sordini. Pastoralambiente: folgender Text des Recitativo: "Es waren Hirten beisammen auf dem Felde, die hüteten ihre Herde des Nachts."
  
Menuett [fragmento], KV 571a (KV Anh. 106) — Perdido, não temos muitas informações; pedia flauto piccolo, era em lá maior.

13) Zwölf Menuette [Doze minuetos], KV 585 
"Flauto piccolo" ("flautino" no catálogo de Mozart) no trio do nº 6 [partitura] [perdi a gravação]
Escrito E4-A5, soando uma oitava acima (flauta doce soprano)

14) Zwöf deutsche Tänze [Doze danças alemãs], KV 586
Flauto piccolo (soando uma oitava acima do escrito) nos seguintes trechos:
Nº 2, Trio: escrito F#4-G5 (soprano ou sopranino) [partitura] [ouvir]
Nº 5, Trio: escrito A4-F5 (sopranino ou soprano) [partitura] [ouvir] dobrando transversal em uníssono
Nº 6, Trio: escrito D4-B5 (soprano) [partitura] [ouvir] em oitava e uníssono com a transversal
Nº 10, Trio: escrito E4-C6 (soprano) [partitura] [ouvir]
Nº 12, Trio, e Coda: escrito C4-D6 (soprano) [partitura] [ouvir] acima de duas transversais

Obras de 1791

15) Zwölf Menuette (Doze minuetos), KV 599
Flauto piccolo, soando uma oitava acima do escrito usado em:
Nº 6, Trio: escrito C#5-D6 [partitura] [ouvir] soprano ou sopranino dobrando transversal em oitava
Nº 8, Trio [=KV 601 Nº 2]: escrito G4-E6 [partitura] [ouvir] sopranino
Nº 11–12 = KV 604 Nº 1–2


Vier Menuette [Quatro Minuetos], KV 601
Parte original perdida - música transferida para KV 599, nº 7-10 (acima)

Vier deutsche Tänze [Quatro danças alemãs], KV 602;
Drei deutsche Tänze [Três danças alemãs], KV 605 
Partes originais perdidas; ambos KV 602 e 605 foram transferidos para KV 600, a seguir

16) Dreizehn deutsche Tänze [Treze danças alemãs], KV 600
Flauto piccolo usado nos seguintes trechos (soa uma oitava acima do escrito):
Nº 2, Trio: escrito E4-D5 (soprano) [partitura] [ouvir]
Nº 5, Trio "Der Kanarienvogel" [O Canário]: escrito D4-G5 [partitura] [ouvir] (soprano dialoga com transversal)
Nº 6, Trio: escrito A4-D6 [partitura] [ouvir] (sopranino ou soprano em oitava com transversal)
Nº 10 (=KV 602 Nº4), Trio: escrito E4-A5 [partitura] [ouvir] (soprano em uníssono com transversal)
Nº 13 (=KV 605 Nº3): escrito C5-D6 [partitura] [ouvir] (soprano ou sopranino ou garklein)
Coda: escrito E4-C6 [partitura] [ouvir] (soprano)


17) Zwei Kontretänze, KV 603
Flauto piccolo apenas no Nº 1 [partitura] [ouvir], extensão escrita D5-D6, soa oitava acima (sopranino ou garklein)

Opera: Die Zauberflöte, KV 620 (ver acima: uso esporádico em ópera, item 1);


LINK CURTO para esta página:
http://tinyurl.com/mozartrecorder

…aguardem atualizações, a pesquisa continua!

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Óperas e ballets do The Royal Opera House no Cinemark 2012

Acabei de saber que a temporada 2012 da ROH vai ser transmitida pelo Cinemark, inclusive, Rigoletto será ao vivo! Não posso esperar pra ver o baixo soltando um longo fá grave no final do dueto com o protagonista, dizendo "Sparafucile", dessa vez, na telona, e em tempo real!

VEM GENTE

Os valores variam entre R$ 60 (inteira) e R$ 25 (meia). No total, se vc for estudante, assiste 8 espetáculos por 200 reais. A partir de 25 de fevereiro de 2012 já começa a temporada, que vai até março, em 30 cidades. Programação e localização aqui ó:

http://www.belemcom.com.br/conteudos/imagens/md/angela__tosca_1328647058.jpg
Tosca [interpretada por Angela Gheourgiu] abre a temporada [fonte]

SAIBA MAIS [notícia completa]:
http://pt-br.facebook.com/notes/shopping-iguatemi-bras%C3%ADlia/rede-cinemark-exibe-direto-de-londres-a-temporada-2012-de-%C3%B3peras-e-bal%C3%A9s-do-the-/342007742488763

Aqui no ES, quando tem, é uma ópera por ano. A cultura anda devagar. A salvação dos capixabas pode ser a ópera-filme, ou transmissão ao vivo no cinema. Mesmo que vc tenha acesso a uma programação boa de óperas, não deixe de comparecer, é sempre bom conhecer outras montagens.

Vejo vcs lá SEUS LINDO =*

Agradeço à Luana pela sugestão.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Música obsessiva-compulsiva

Era uma vez uma compositora [sim, mulher] russa que viveu a 2ª grande guerra do século passado, e morreu no início do século atual. A música dela foi censurada pela União Soviética, apesar de não ter "nada demais". A URSS alegava que o motivo da censura era que ela e sua música apresentavam uma postura de obstinação e teimosia.

Até 2000 ela era praticamente desconhecida no Brasil. Eu estreei a música dela no ES e acompanhei surgir, na internet popular e nas redes sociais, um interesse por sua obra, tão única, tão simples e complexa. Hoje, é possível encontrar materiais sobre ela no meio acadêmico, discutir em eventos, etc. As coisas acontecem rápido. Muitos países não ouviram, ainda, sua música, uma vez que só foi publicada recentemente e poucos músicos se interessam.

A música dela é muito "primitiva", daí o apelido de "dama do martelo", e até 5 anos atrás era impossível de classificar ou comparar. Hoje, é comparada conceitualmente à fase intermediária de Messiaen e a alguns experimentalistas americanos. Foi comparada também a Hindemith, Bartók, Pettersson, Pärt, Stravinsky e outros em momentos muito específicos, dando indícios de possível influência. [fonte]

Não vou torturar você com uma música de difícil audição, apenas gostaria de te mostrar o auge de uma de suas maiores peças:



Após definir um "tema", ela reforça TANTO um aspecto em particular desse tema que exige que, se necessário, o pianista quebre seu punho/antebraço no piano enquanto repete aquele momento ou aspecto do tema (a partitura diz: que seus ossos façam barulho). Isso parece agressividade, mas na verdade é o que eu chamaria de "insistência assertiva". Ou seria um desenvolvimento musical com TOC?

Outro dia preparei um vídeo de partitura+audio da quinta sinfonia dela. Caso desejem assistir, basta acessar:
http://www.youtube.com/watch?v=WZXIh6udAco

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Son qual nave

Baixou a pombagira aqui, e resolvi comparar três performances excelentes da ária barroca "Son qual nave" (sou como um barco). Resolvi exagerar bastante, para incitar ódio, digo, debate. :)

Vou nomear e ordenar assim as performances: a virtuosa, a perfeccionista e a extrovertida, e vou deixar pro leitor fazer o juízo final.

A ária faz parte da ópera Artaserse (1734), e foi escrita por Riccardo Broschi para seu irmão, o famoso castrato Farinelli. A partitura está disponível aqui:
http://imslp.org/wiki/Artaserse_%28Broschi,_Riccardo%29

Quem disse que "gosto não se discute" está equivocado: gosto se discute sim, mas não se impõe; cada um possui o direito de pensar diferente, assim como o dever de justificar seu pensamento em situações de diversidade. Só assim nos tornamos pessoas plenas. Xingue-me nos comentários.

A VIRTUOSA


Cecilia Bartoli, mezzo-soprano coloratura italiana, nesse vídeo pega da capo e surpreende na primeira cadenza sustentando uma nota por 25 segundos, brincando com ressonância e terminando em coloratura do C#6 ao F#4. Needless to say, o público vai ao delírio. O aproximar e afastar da voz, na sustentação recordista, lembra um barco oscilando. Aqui, a voz é um instrumento, assim como o violino de Paganini. Após os aplausos eufóricos, ela se diverte exibindo mais de sua pirotecnia vocal. As notas graves possuem o mesmo peso, volume e agilidade das agudas: impossível não ficar impressionado. A voz muito leve/pequena aliada a um controle quase mágico nos faz duvidar dos nossos ouvidos. A aparência muito imponente, tanto pelo grande porte físico quanto pelo olhar de águia, reforçam a sua presença de palco. É o tipo de performance de cair o queixo e pensar "será que ela é humana?". Engana-se quem pensa que, por ser italiana, teria proveito quanto ao idioma do texto: ela nem sequer se importa com o mesmo. No contexto, que é um bis apresentado ao final de um recital, ela opta pela afinação antiga, meio tom abaixo da atual. Pouco é feito em termos de nuance de dinâmica e articulação durante as coloraturas: os trinados são pouco diferenciados, e, talvez pela voz pequena e leve, tudo se resume a uma rajada de tiros. Um assassinato do fraseado. Quem precisa de fraseado quando se possui o fôlego e o apoio respiratório dos castrati, a agilidade de um raio, a extensão de uma mezzo coloratura e o fascínio de uma diva? Afinal, ninguém compra essa performance pelo fraseado ou pelas expressões sutis - isso fica pras outras.

A PERFECCIONISTA


Julia Lezhneva, [mezzo] soprano coloratura russa, faz o tipo que não faz sequer um vibrato sem pensar. Ela pensa cada passo que dá. Uma aparência menos imponente, bastante sorridente, de uma figura meiga e tipicamente donzela não deixa transparecer tanto a concentração extrema e o detalhismo da performance. Da primeira à última frase, cada articulação e dinâmica é premeditada. O colorido da voz, aqui, importa muito. Estamos lidando com outra rainha da agilidade, porém com um foco diferente na performance, onde equilibra-se doçura e maravilha. É o tipo de performance para suspirar, respirar fundo e suspirar de novo. Há mais comunicação com o acompanhamento, mais diálogo expressivo com a obra em si, menos voz "cinza", digo, menos reduzida a movimentações de sobe-desce (ou de agita-acalma), enfim, transcendendo a técnica. Assim, a forma fica clara, até mesmo para o apreciador "leigo". A clareza formal é ótima para uma obra originalmente dramática. A questão é: tanta sutileza não estrapola algum limite e "adocica" demais a ária? A dedicação da intérprete em dominar todos esses detalhes não evita que ela realize expressões espontâneas essenciais? não a torna menos convincente? Pecar pelo excesso, no final das contas, pode ser o mesmo que pecar pela falta. Mas será que aqui houve tal pecado?

A EXTROVERTIDA


Simone Kermes, [mezzo*] soprano coloratura [dramática] alemã, causa polêmica pelos seus movimentos corporais constantes. Parece ser o jeito dela relaxar no palco e manter uma regência corporal, tanto de si mesma quanto da orquestra. Esse atletismo deve queimar muitas calorias. Aliando isso ao seu visual nada convencional para uma cantora de ópera, semelhante a uma pop/rock star, ela possui uma grande presença de palco, gerando questionamentos, especialmente dos mais conservadores: a aparência e a corporalidade afetam negativamente a música ou o concerto em geral? Vamos nos deter ao som: ela utiliza extensão mais ampla dentre as citadas, do G3 ao D6, e demonstra domínio técnico consciente enquanto realiza sua leitura da obra, porém não revela tanto cuidado com a sonoridade. Respira em pontos inexperados, como antes de "mar" no "fine" antes da seção contrastante (3:04). É o tipo de performance que faz a gente enxergar a obra por ângulos diferentes ("como eu não pensei nisso antes?"), mas não permite viajar no texto, apesar da excelente dicção. Refrescante e empolgante ao mesmo tempo. A grande forma é quebrada em pequenos momentos mágicos: cada evento é igualmente importante para Simone. Uma intérprete que não aparenta estar presa ao palco e engessada em formalidades do estilo é como um grito de liberdade, a sensação de improviso mesmo que se faça "apenas" o que está escrito (obviamente com expressões bem particulares). Os estímulos visuais podem ser vistos como complemento, enriquecimento, distração ou até mesmo ruína da música - depende do público. O que você acha?

*em alguns contextos kermes se apresenta/identifica como mezzo, exemplo: http://www.youtube.com/watch?v=iC0XRDImB8I

***

Qual a melhor das três? VOCÊ DECIDE.

Por mim, todas as três são excelentes, e eu pagaria *rindo* pra assistir qualquer uma. Qual me agrada mais? Depende do dia. Há dias de desejar a virtuosa, há dias de desejar a perfeccionista, há dias de desejar a extrovertida. Lembrem-se que exagerei aspectos chamativos delas apenas para finalidade didática.

Sinceramente, não ouso preferir terminantemente uma às demais. Não vejo necessidade de taxar uma delas de melhor e as demais como inferiores, afinal, todas são artistas admiráveis e se mantém fiéis à obra em seu texto original, apesar dos requintes pessoalíssimos saltarem aos olhos de um público entediado.

Assim como há diversidade de interpretações, eu acredito na diversidade de experiências de apreciação. Ninguém ouve uma obra musical da mesma maneira duas vezes seguidas - mesmo que com os mesmos intérpretes.

Mas esse post foi em vão - nos comentários do youtube, odiadores vão odiar. Fans, digo, os admiradores fanáticos, podem dar belas lições de brutalidade nas mais finas artes. Nenhum pouco melhor do que uma briga de torcidas organizadas de futebol carioca.

ENTÃO, PORRA, PAREM DE ENCHER MEU SACO SÓ PORQUE EU NÃO FICO IDOLATRANDO UMA CANTORA ESPECIFICAMENTE, E ODIANDO AS "CONCORRENTES".

sábado, 16 de julho de 2011

Carla Maffioletti - TENSO+TROLL COMBO

Primeiro, vamos assistir:



ATENÇÃO AOS MOMENTOS DRAMÁTICOS:
  • 0:16 Ela faz TROLLFACE
  • 2:53 Ela canta um B6 (1980hz) - o último si de um teclado de 5 oitavas, 5 linhas suplementares acima da pauta com clave de sol. [Scientific pitch notation] Leitor[a] diz que é um C7.
  • 3:48 Ela faz um mi bemol de soprano bem longo (uns 9 segundos) e termina num lá bemol agudo - pra cima.

Zoação 1:




Zoação 2: [clique para ampliar]





Agora sério:

Assisti umas dezenas de sopranos leves exibindo suas coloraturas ligeiras no papel de Olímpia na ópera Les contes d'Hoffmann do Offenbach. Essa gaúcha, na minha opinião, tem sido a melhor no papel até então. Equilibrada, graciosa, apropriada ao papel de corpo e alma.

Ela é uma boneca perfeita. Baixinha, entra no palco carregada como um brinquedo. Tem mão de barbie, pé de princesa. A gesticulação e a atuação são convincentes e naturais. Ela não parece "engessada" mecanicamente, e ao mesmo tempo não foge do papel de uma boneca mágica. Cada vibrato dela é pensado, reparem bem! Sem contar que a orquestra é ótima, além de estar devidamente caracterizada de brinquedo!

Problemas musicais? Nenhum. Só sinto falta de contrastes dinâmicos (como pianíssimos que fazem as divas Sumi Jo, Natalie Dessay e Luciana Serra).

Algum problema não-musical? Acho que ficou forçado demais pro humor. Tudo bem, fazer circo com ária é legal de vez em quando, mas eu não curti nesse caso, porque parece que não mostra o melhor nem da cantora nem da obra. A aria é ideal pra voz dela, mas daí a chegar fazendo TROLLFACE e chamando o maestro de "mamãe" pra mim já era suficiente... insistir nesses apelos me pareceu forçado. Aí vai o maestro falar que ela dá defeito (na hora de dar corda) porque é "made in China"... (Análise de discurso aí? Não, vou poupá-los.) Também achei muito demorado o intervalo pra recarregar a boneca, enfim, achei desnecessário o circo. Podem me crucificar por isso. Xinguem livremente nos comentários.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Mozart Troll

Em nome de todas as sopranos:
WOLFGANG AMADEUS MOZART, VAI TOMAR NO CU!!!

Assista este WTF clássico (se estiver com pressa, pule pros 10:00 e veja só o final):


MOZART VAI SE FUDER VC TA DE SACANAGEM NÉ

Fiz até tirinha original pra fudemorar (clique na imagem para ampliar):

GURIA, VOCÊ QUER ESTUDAR CANTO? MOZART TROLL DESMOTIVA VOCÊ.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Quem disse que ópera é coisa de gente inteligente e refinada?


Mozart, me perdoe!
Um tenor cantando papel de barítono-baixo, descamisado, com piercing nos mamilos, saltitando no quintal com um pegador de borboletas. Depois ainda tem gente que acha que ópera é coisa exclusiva de gente refinada e inteligente!

terça-feira, 15 de março de 2011

Ópera e preconceito

Olá pessoal. Eu gosto muito de ópera, acho muito mágico. Mas se tem uma coisa que eu não entendo é esse preconceito que o pessoal tem contra ópera. Vou responder por tópicos, espero esclarecer tudo.

QUE DIABOS É ÓPERA?
De modo simplista, ópera é o teatro 100% cantado, de origem européia. Os atores são cantores, ou melhor dizendo, os cantores são atores, e vivem uma história qualquer, como num filme. Mas enfim, o importante é que durante a encenação os atores não conversam entre si falando, mas cantando - por isso é diferente do teatro comum e dos "musicais" (em que a música não acontece o tempo todo, tem muita falação).
Ópera é a união suprema de duas artes no primeiro plano (a música e o teatro) e outras duas em segundo plano (a literatura e a dança), e acaba incluindo por tabela as outras artes também (pintura, escultura e arquitetura). Cada montagem de cenário é chamada de "ato", tipo, normalmente uma ópera em 3 atos possui três cenários diferentes e três momentos da história, um pra cada cenário.

"ÓPERA É COISA DE RICO / ELITISTA"
Quanto preconceito! No Brasil, por exemplo, a coisa mais difícil é uma ópera cobrar entrada! Normalmente as óperas são gratuitas, bancadas pelo governo ou pela prefeitura, como atividade da Secretaria de Cultura ou de lazer, ou ainda de educação; ou ainda fruto da iniciativa de instituições privadas que conseguem se manter sem cobrar entrada. Eu já assisti bastante ópera na vida e só paguei pra entrar uma vez que eu me lembre. Quando cobram a entrada, dificilmente passa de 10 reais - é o que você paga pra assistir um show de humor fuleiro, ou pra ir no cinema perder tempo dia de semana. Aliás, ópera nasceu historicamente para o povo consumir, não somente pra ricos. Ópera é uma linguagem universal, unindo poesia nobre, teatro e música. Reflitão.

"ÓPERA É COISA DE GRINGO"
Mentira! O teatro cantado tem manifestações nacionais legais também. Tudo bem que ninguém gosta de ópera brasileira né, mas não precisa negar que ela exista. Ah sim, a questão do idioma. O Português não é uma língua musical, fato. O fato de as melhores óperas serem européias não é problema, pois tem sempre a tradução automática sendo projetada acima do palco (ou dentro dele). Portanto, enquanto os atores cantam em italiano, alemão ou qualquer língua, você tem a tradução em português brasileiro clara e em tempo real logo acima da cabeça deles pra ler. Qualquer ser pensante assiste filme legendado porque é mais expressivo ouvir a voz original dos atores, então ir ao teatro e assistir uma "ópera legendada" na vida real não deve ser "coisa de gringo" não, é coisa de gente sensível e exigente mesmo!

"ÓPERA EXIGE ESTUDO PRÉVIO"
Não mesmo! (A não ser que você seja analfabeto.) Ao entrar no teatro você recebe o programa, que é um panfletinho com informações sobre os artistas e o evento. No programa consta um resumo da ópera, pra você ler rapidamente e saber mais ou menos como vai ser a história; às vezes tem spoilers chatos, às vezes não. Todavia, não é necessário ler o programa pra entender a ópera, basta ler as legendas/traduções dos diálogos e prestar atenção do começo ao fim.

"ÓPERA É COMPLICADA DE ENTENDER"
Novamente temos aqui outro preconceito sem fundamento. Os temas de ópera são comuns: triângulo amoroso, ciúmes, inveja, ganância, enfim, muita coisa que você vê todos os dias na novela televisiva. Eu costumo brincar que ópera é mistura de novela mexicana com musical, só que ao vivo e 100% cantado. Os temas são sempre assim tão humanos e genéricos, acessíveis? Não. Existe ópera sobre tudo quanto é assunto, por exemplo temas épicos, mitológicos, políticos, etc. mas isso raramente acontece no Brasil. Mesmo nesses casos não é necessário entender de história nem de música nem da antiguidade clássica pra assistir uma ópera. Novamente, pra curtir basta ler o programa e acompanhar a história, no teatro mesmo, sem nenhuma preparação prévia (a não ser que você queira se tornar um especialista em ópera).

"ÓPERA É CANSATIVA"
Só se você for analfabeto[2]. Porque qualquer pessoa que consegue ver um filme legendado consegue acompanhar uma ópera [legendada] ao vivo, que dificilmente vai durar 2 horas. Se durar isso tudo, terá intervalo pra você esticar as pernas e lanchar, enquanto pensa "o que vai acontecer depois?". Talvez o que cansa seja uma posição ruim no teatro; aprenda a escolher os melhores assentos pra ficar confortável enquanto assiste o espetáculo, podendo ouvir bem a orquestra que acompanha e ao mesmo tempo ver bem os atores. Sugiro sentar-se no meio exato, nem muito na frente nem muito no fundo.
Outra coisa, em ópera o texto é muito mais resumido do que em filmes e teatro não-cantado, ou seja, enquanto no teatro/cinema se fala 5 frases, em ópera se fala 1. Isso porque os cantores precisam de espaço para embelezar cada palavra com melisma e coloratura, então a narrativa tem que ser mais sucinta e acessível, mas não necessariamente mais lenta (pelo contrário): isso facilita acompanhar a legenda projetada ao vivo sem impedir que você repare cada detalhe no palco.

"ÓPERA É CHATA"
Quem fala isso não sabe que existem vários estilos e temáticas pra ópera, assim como há pra filmes. Há desde as óperas cômicas até as políticas, passando pelas épicas, terror, drama, enfim, tem pra todos os gostos. Sem contar o eventual ar de sensualidade que, pelo fato de ser ao vivo, faz um simples beijo em ópera ser mais impactante que o sexo explícito das novelas da Globo! Talvez você tenha assistido uma única ópera na vida e achou chata porque não era do seu estilo, ou porque vc não quis prestar atenção nos acontecimentos. Mas é bom lembrar que existem óperas mais simples e mais complexas, mais longas e mais curtas [tipo meia hora], mais luxuosas e mais grosseiras, bem interpretadas e mal interpretadas.

"ÓPERA É MACHISTA / HETEROSSEXISTA"
Realmente, a maioria das óperas passa uma ideologia machista ou heterossexista - assim como 99% dos filmes e da programação televisiva, e nem por isso você deixa de assistir filmes e TV. Aliás, mesmo que algumas óperas coloquem a mulher como mero objeto ou como "o lado derrotado", a verdade é que as mulheres ganham salários maiores, mulheres são o destaque, mulheres levam o título de diva, mulheres são tudo que nós valorizamos e lembramos bem numa ópera! (Pra quem não sabe, o termo DIVA, usado corretamente, significa: primeira dama de uma ópera; normalmente uma soprano destacadíssima.) Ao invés de ser maléfico à mulher, como é o caso da TV aberta emburrecedora, é uma atividade que dignifica as atrizes-cantoras enquanto mulheres, destacando suas qualidades mesmo que o enredo seja machista-medieval.

"ÓPERA É BOBA"
Só se você considerar "bobo" um teatro-cantado que tenha eventualmente cenas de assassinato, sexo explícito, palavrões, e outras coisas impróprias para menores. O engraçado é que é considerada livre de censura [classificação] no Brasil, mesmo quando é totalmente imprópria para menores. Quem acha ópera algo tipo "igreja" ou "santinha" ou "infantilóide" certamente não sabe o que é ópera... Ópera é voltada normalmente para adultos e pouco se importa com a "moral", pelo contrário, tem sido historicamente uma forma de subversão à mesma (e sofreu censura em muitos casos).

"ÓPERA NÃO SEGUIU O AVANÇO TECNOLÓGICO"
Pelo contrário, hoje em dia que se justifica cada vez mais a manutenção dessa forma artística! Vamos pensar que a ópera não compete com os filmes por exemplo, ela apenas é uma outra forma artística paralela, tudo tem seu lugar. Não, eu não vou falar sobre como os recursos de sonorização, acústica, arquitetura, iluminação, enfim, não vou falar sobre como toda a evolução tecnológica ajudou a ópera. Quero falar sobre os meios pelos quais temos acesso a ópera hoje. Não, não vou falar que qualquer um baixa e assiste pela net, ou vê os trechos cortados pelo youtube não.
Bom, vamos primeiro pensar no DVD. Ele permite que vejamos a qualquer momento em casa a ópera, com legendas em vários idiomas, às vezes em dual audio para as partes faladas, às vezes com várias opções de ângulo de câmera para algumas cenas. Mas a tecnologia mais atual que está sendo implantada no Brasil é a transmissão em 3D em cinemas, seja a partir de uma gravação ou ao vivo mesmo (tipo uma ópera que esteja acontecendo na europa pode ser vista de vários países em altíssima qualidade).

ÓPERA 3D NO CINEMA?
Qual a vantagem de ver uma gravação de ópera em 3D no cinema? Por mais que o público faça barulho, você ouve cada nuance das vozes e da orquestra. Outra vantagem é que vc vê mais de perto, dos melhores ângulos, tudo gravado e selecionado a partir de uma performance ao vivo.
Eu tive o prazer de assistir a primeira ópera em 3D a ser transmitida no estado do Espírito Santo pelo Cinemark, no fds 12/03/2011; a saber, Carmen, de Bizet. A crítica não encontrou problemas musicais, mas reclamou muito da imagem e das legendas: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/885538-problemas-de-imagem-e-legenda-prejudicam-carmen-em-3d.shtml
Mas eu achei ótimo, bem melhor que assistir um DVD 2D na sala de casa; foi bem real a sensação de estar no teatro. Estive lá pra incentivar esse tipo de programação, espero que aconteça mais e mais frequentemente, e que o público de ópera cresça, tanto ao vivo quanto no cinema 3D. Espero que mais pessoas percam o preconceito contra ópera e passem a curtir a magia da ópera ao vivo (ou da transmissão em 3D) - que é muito mais mágica do que filmes/livros feitos a partir de óperas.

POR QUE GOSTAR DE ÓPERA?
Não tem resposta pra essa pergunta. Na verdade, vc não precisa gostar, vc precisa conhecer pra ser uma pessoa bem informada. O gosto depende do estilo e da vivência de cada um. São vários os motivos pra gostar de ópera. Uns gostam porque vêem cantores se esgoelando mostrando avançadas técnicas vocais, coloraturas, virtuosismos, etc. Outros querem apenas se emocionar com a história, vendo os atores em carne e osso, sentindo a respiração deles, a cena acontecendo de verdade ali a 3 metros de distância, e quem sabe conseguir uma foto ou autógrafo no final. Outros gostam da coisa visual toda, as roupas, o ambiente, etc. Outros vão mesmo só pra achar um[a] parceiro[a] cult e sensível para eventualidades amorosas. Outros pra se divertir, porque existem óperas buffas [de comédia] que são tipo stand up cult. Outros procuram surpresas e novidades, porque uma ópera nunca é apresentada da mesma forma: diferente dos filmes, a cada récita [apresentação] muda o feeling e pode haver pequenos improvisos, e a cada montagem [equipe/local] mudam os atores, as roupas, o cenário, etc.

"POR QUE EU DEVO ASSISTIR UMA ÓPERA?"
Não há motivo para ter preconceito, eu já provei isso detalhadamente, e cada um encontra motivos para gostar ou não, depois de conhecer, é claro. Você não precisa gostar nem se identificar com a coisa, mas eu ouso dizer que você deve assistir. Afinal, você paga impostos e tem direito do acesso à cultura, portanto tem um assento no teatro mais próximo te esperando. O importante é não ter preconceito e ir assistir ópera de vez em quando; afinal, não custa nada e enriquece nossa vida. É sua chance de conhecer outros estilos de canto e de voz. Assistir ópera conta pro nosso currículo cultural e nos liga ao passado - quando não existia TV nem cinema, tudo era ao vivo e em carne e osso. Como alguém pode dizer que não gosta de ópera se não assistiu nem três óperas na vida? Seria o mesmo que dizer que não gosta de filme porque assistiu A Lagoa Azul. Assite gente, eu garanto que muitos vão se apaixonar por ópera, e quem sabe até desenvolver um gosto refinado por algum estilo específico de ópera.

Agradeço ao @AngeloViolist por ajudar nessa postagem.
Yours,
@Silas_Co

quinta-feira, 10 de março de 2011

Tromba Marina

Olá pessoal,
Queria mostrar pra vocês hoje a Tromba Marina, traduzido normalmente como Trompete de Maria, às vezes chamado erradamente de Trompete Marinho.

http://www.oriscus.com/mi/tm/img/memling.jpg

É um cordofone de uma ou duas cordas em formato triangular, como um berimbau tocado com arco de violoncello, com cavalete solto. É um instrumento medieval que sobreviveu do sec.XII até o barroco, usado para substituir o trompete (que era caro e chato de fabricar) imitando-lhe o timbre e o volume estridente.

Som e foto:


Brasileiro demonstrando e explicando o instrumento:



http://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/thumb/7/72/Marine_trumpet.jpg/437px-Marine_trumpet.jpg

Site de um fabricante, com audio e fotos:
http://www.trombamarina.com/instruments/tromba-marina/

http://www.trombamarina.com/img/usr/tromba-chip-concert-cropped.jpg

Estudo organológico detalhado, sobre a história e a técnica do instrumento:
http://www.oriscus.com/mi/tm/

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/8/8e/Syntagma12.png/800px-Syntagma12.png

As wikipedias em inglês, FRancês e ITaliano trazem dados ótimos:
http://EN.wikipedia.org/wiki/Tromba_marina

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Foda-se o seu corpo, sua mente; foda-se a sua saúde

Se você é músico ou pelo menos realista você sabe que
nenhum instrumento ou atividade musical é anatomicamente adequado.

Sim. Todo instrumento é anti-anatômico. Se você vai tocar sem a técnica, vc se fode e pode ficar aleijado. Mas mesmo que tecnicamente correto, seu corpo ganha lesões muito específicas, tendinite, LER, etc. Como a gente sempre faz um pouco além do recomendado, acaba se fodendo. Ou mesmo trabalhando normalmente, ganhamos uma lista de doenças e riscos à saúde, que motivaram o PL 1714/209/06/2011 que provê 20% de aumento a todos os músicos a título de insalubridade [link - com lista de doenças de músicos].

Música dá tanto prazer que a gente consegue ignorar a dor do excesso (link). Não é porque tudo tem limite não (inclusive seu corpo), é porque os instrumentos não se adaptam ao seu corpo - é você que tem que fazer o possível pra adaptar seu corpo a eles. Daí nascem as deformidades dos instrumentistas - das quais acho algumas belas, como mão de pianista.

Eu toco theremin, e tenho um blog sobre isso: http://teremin.blogspot.com/ Nem mesmo um instrumento invisível e impalpável é anatomicamente adequado: minha mão direita está com os dedos tortos e os braços ficam terrivelmente cansados. É semelhante a lesões de maestro. Lembro de uma amiga regente que quando começou a reger ficou com os bíceps enormes - sem deixar de ser super feminina, é claro. Ah, é só balançar os braços no ar em ambos os casos? Vai crendo...

Mas fiquem tranquilos, não são apenas os instrumentos e atividades musicais que são anti-anatômicos. Fenômenos naturais inevitáveis como a morte e o parto são anti-anatômicos também - este último tanto pra mãe quanto pra criança.

Mas voltando ao masoquismo dos músicos, que é o assunto desse post, querem saber uma forma de comprovar se alguém é músico de verdade? Pergunte-o se, hipoteticamente, tivesse que escolher entre ser completamente cego e completamente surdo, o que seria pior. Músicos sempre responderão que é pior ser surdo, e prefeririam, hipoteticamente, a cegueira total. Os demais seres humanos não-músicos dirão que é melhor não ouvir e continuar enxergando. Eu prefiro morrer do que perder a audição, sinceramente.

DEPOIS dessa introdução piegas, vamos desenvolver o assunto desse post. Vou começar com uma idéia.

O corpo deve servir à música. Não é a música que serve ao corpo.

Existem instrumentos, peças e atividades musicais que são verdadeiros atentados à saúde humana em todos os sentidos. Não quero nem me deter aos casos de loucura e demência causados por sons (sim, eles existem). Vou focar na parte muscular e óssea mesmo, e na saúde em geral (mental e fisiológica), em como a música pode foder isso tudo e ainda deixar o gostinho de "quero mais" na gente.


1) CARRILHÃO (ou órgão de sinos)

O carrilhão consiste em um conjunto de sinos de igreja, enormes, ligados a um mecanismo de alavancas que permitem você tocar os sinos como um órgão. Só que tudo é muito pesado, então o "console" consiste em bastões de madeira (ou metal) em que você dá socos com o punho serrado, então através de cabos de aço essas alavancas balançam os sinos. É realmente de deixar a mão e o punho roxos ou em carne viva, em alguns momentos. Leiam a seguinte matéria, sobre uma carrilhonista brasileira (sim, uma moça delicada tocando esse instrumento de brutamontes) em que ela confirma o que eu acabo de dizer:
http://www.folhasinfonica.com.br/materias.asp?id=99

Assistam a Olesya Rostovskaya, carrilhonista russa, tocando uma composição dela em um carrilhão pleno. Os pedais tocam os sinos mais graves:


Se quiser ver um concerto completo, mais virtuoso, com tudo que é possível fazer num carrilhão, acesse:
http://www.youtube.com/watch?v=i13yIWb96WA

Vale a pena assistir também o leve concerto para carrilhão e orquestra do Purcell:
http://www.youtube.com/watch?v=y4jG3pmGA2Q

Também tem um cartoon sobre a origem do carrilhão, muito divertido:
http://www.youtube.com/watch?v=4eTmwLD9MEs


2) PIANO: glissandi e clusters

Qualquer um sabe que o piano maltrata grandemente os músicos. Vamos começar falando do glissando: quando o pianista passa os dedos sobre o piano arrastando em todas as teclas muito rapidamente. Glissando com qualquer mão e em qualquer sentido sangra, deixa o dedo em carne viva e em alguns casos arranca a unha dos músicos. Já vi virtuosos e mestres em piano dizendo que não tem como evitar isso, é só pensar na música e evitar pensar no sofrimento, que sai... se as teclas encherem de sangue, costuma ficar uma flanelinha dentro do piano, você enxuga e limpa o sangue durante as pausas.

Você deve estar pensando "ah glissar de vez em quando não mata ninguém". Pois bem, muitas vezes os pianos de concerto são mais duros do que parece; e mesmo que todos os bons pianos fossem super moles, a ponta dos dedos não foi feita pra passar numa velocidade altíssima sobre as teclas, que são simplesmente mecanismos de alavanca. Ora bolas, teclas são alavancas, devem ser pressionadas de cima pra baixo, e não lateralmente, como num glissando.

Vou dar alguns exemplos. Durante o Concerto para a Mão Esquerda de Ravel o pianista deve glissar várias vezes da primeira à última tecla branca do piano em menos de 2 segundos utilizando a unha do polegar esquerdo. Eu já sangrei muito tentando tocar essa peça. Mas o pior é quando tem glissando em oitavas, ou seja, duas notas (ou mais) que devem ser arrastadas por uma mão apenas - no caso das oitavas, uma nota fica no dedinho mínimo e a outra fica no polegar, e, sim, os pianistas são forçados a arrastar o dedinho mínimo contra as teclas do piano sangre o que sangrar. Exemplo, o Cziffra tocando sua peça "Fantasia sobre William Tell", no compasso 49, que aparece na tela aos 4:44; e também no compasso 84, que vai na tela aos 5:52, tem um glissando de acordes na mão esquerda:
http://www.youtube.com/watch?v=0PyenH1JH38

Outro exemplo: em La Fantaisie Roumaine, uma passagem inteira de glissandos múltiplos na mão direita, do compasso 86 ao 88, a partir de 2:13:
http://www.youtube.com/watch?v=Yr4drXNaTkE
Kurtag fez uma peça infantil composta apenas de glissandi leves e lentos, que, se não for tocada num piano delicado e leve, é auto-mutilação na certa:
http://www.youtube.com/watch?v=pLbx5aSVEfM


Mas só os glissandos são a crueldade do piano? Não, não. Além de dar LER, tendinite e ser uma manicure sanguinária, o piano pode quebrar seu braço com clusters. A seguinte peça, segundo o livro Música de Invenção de Augusto de Campos, pede para se ouvir o impacto dos ossos do pianista, que deve tocar ffffff (para quem não é músico, quer dizer forticicicicicíssimo). Sim, o músico é instruído pela partitura a socar seu antebraço contra o piano até que a platéia ouça o barulho dos ossos rangendo. Eu toquei essa peça em 2010 na faculdade, meu braço ficou doendo 3 dias, fiquei com vários hematomas mas o roxo saiu rápido, e tive cortes no pulso e nos cotovelos. As mãos ficaram vermelhas por horas, pois clusters com a palma da mão doem pra caramba quando tem que sforzare (vejam a partir de 2:05):

Obs: novamente, isso é obra de uma mulher. A compositora se chama Galina Ustvolskaya, super feminina lá com sua saia cristã e seu braço malhado. Chamada popularmente de a "dama do martelo". Apelido super doce né? rsrs


3) TÓXICOS e interações com fumaça, fogo, armas, etc.

Esses elementos não são essencialmente musicais, tudo bem. Mas são comumente usados na música e em muitos casos são indispensáveis. Muita gente que participa de coral de ópera passa mal por inalar aquela fumacinha cenográfica tão comum no teatro.

O pianista japonês Yosuke Yamashita fez duas vezes um espetáculo em que ele improvisa jazz um piano enquanto o piano pega fogo. A primeira vez foi em 1973 numa floresta, para um filme do diretor Kiyoshi Awazu que está disponível nesse link o filme completo. A segunda vez, em 8 de março de 2008, numa praia japonesa, durou uns 10 minutos. Segue vídeo-notícia da performance:
http://www.youtube.com/watch?v=a7C8I_3HHaQ


Além das óbvias queimaduras leves que ele pode ter sofrido, tem toda a toxina da fumaça inalada, que é o que me preocuparia mais. Ele queria tocar até o piano parar de funcionar, mas tudo acabou se tornando numa batalha de vida ou morte, ser humano versus instrumento (fonte).

http://www.allmusiq.com/wp-content/uploads/2009/01/pianoer9.jpg

Não poderia deixar de mencionar diversas vezes em que é necessário para a música o uso de armas de fogo, produzindo aqueles barulhos ensurdecedores. O caso mais famoso é a Abertura 1812 do Tchaikovsky, que requer pelo menos 4 canhões (sim, canhões) atirando durante a música, foda-se o ouvido de quem estiver perto, canhões a partir de 7:50:
http://www.youtube.com/watch?v=0F5k70xwGSk
Isso ainda é menos ensurdecedor do que o som de uma festa rave ou uma boate ou um forró. Odeio som alto.

4) RITUAIS e encenações musicais

Se você não é músico, deixa eu resumir a história: na música "clássica" a partir do século XX, alguns rituais e encenações passaram a fazer parte da música, sendo impossível executar apenas sons. Nesses casos, os sons não fariam sentido musical por si mesmos, sem o ritual ou encenação.


Talvez o exemplo mais cruel disso seja a peça Goldstaub (Pó de ouro) de Stockhausen. Ela dura 4 dias e 4 noites, deve ser tocada por um conjunto de 3 ou 4 músicos. Nos 4 dias os músicos devem ficar em quartos separados, isolados, sem nenhuma comunicação, sem comida (apenas tomando água ou no máximo suco), com os ouvidos protegidos para não ouvir nenhum som, e evitando gerar qualquer som. Devem evitar se concentrar, ou seja, "não pensar em nada", devem evitar se mover, ficando a maior parte do tempo deitados como mortos; todavia, devem evitar também o sono, dormindo apenas o mínimo possível. É o tipo mais radical de meditação e limpeza mental que eu já vi.

Após 4 dias completos nesse ritual de preparação, bem tarde da noite do quarto dia, os músicos se encontram, SEM NENHUMA COMUNICAÇÃO, cada um pega seu instrumento, e sem combinar nada, começa a tocar sons simples e isolados, sem pensar no que estão tocando. Devem fazer isso de olhos fechados e percebendo auditivamente todo o som produzido por eles, mas sem se concentrar em QUE SOM seria esse, sem pensar em qual será o próximo som a tocar, etc. Ou seja, a tortura da meditação extrema não acabou.

Além de ficar uns 5 kilos mais magros, os músicos vão ter a sensação de ouvir pó de ouro caindo do céu, devido aos 4 dias de preparo, seja lá qual for o instrumento. A "limpeza espiritual" promovida por esse ritual faz com que os sons pareçam visíveis e palpáveis, e mesmo o músico conhecendo bem o som do seu instrumento, após os 4 dias de preparo vai parecer que é uma coisa mágica, de outro mundo, que ele nunca ouviu antes. Eu gostaria muito de tocar essa música, mas não achei outros 3 músicos pra participar comigo. Eu tenho experiência com longos jejuns e anorexia em geral, creio que o mais difícil mesmo seria ficar sem pensar, sem se mover e sem se comunicar. A propósito: numa música como essa, não existe público, pois apenas os músicos, que passaram por todo o processo de 4 dias, é que vão entender o sentido musical ali, pois a preparação é parte da música e gera a percepção sonora necessária para tocar/apreciar o "pó de ouro". Link para uma performance ao final do quarto dia: http://www.youtube.com/watch?v=l1jp3HibWAQ

Um outro ritual bem forte acontece no Concerto para Zheng e orquestra de cordas, do compositor chinês Tan Dun. Durante a peça a orquestra toda deve latir como se incorporasse espírito de cães e lobos, e no final, como num ritual xamãnico, todos menos o maestro ficam possuídos e começam a se debater, tocar sons desconexos e latir violentamente. Elementos da cultura chinesa, tibetana e indígenas americanas se misturam com a tradição de concerto européia. Assistam:


Em ópera a oposição dramática (o Mal ou o vilão) costuma ser representado como "satan", mesmo quando o cunho não é nada mitológico nem religioso, só pra se aproximar mesmo da cultura cristã e para aumentar a carga emocional da coisa (fonte). Aí em alguns momentos é muito normal o teatro da ópera envolver rituais "reais". Por exemplo, na ópera Un ballo in maschera de Verdi, no ato 1 cena 2, a Ulrika, uma bruxa negra contralto, sacrifica literalmente uma galinha no palco do teatro enquanto invoca o Rei do Inferno:

Obs.: Se você come frango, não tem moral de condenar alguém que, na umbanda, mata galinhas ritualmente.

--------------//-----------------

CONCLUSÃO

Amiguinhos, depois dessa reflexão, voltem à frase destacada lá em cima. O músico não é servido pela música, pelo contrário, ele serve à música com o seu corpo e sua vida se for preciso. O que os compositores pedirem, eu faço, se estiver musicalmente convencido. Volto a pocar meus dedos e braços no piano sempre que possível, pois a música como um todo compensa!

E viva à música!