sábado, 19 de fevereiro de 2011

Foda-se o seu corpo, sua mente; foda-se a sua saúde

Se você é músico ou pelo menos realista você sabe que
nenhum instrumento ou atividade musical é anatomicamente adequado.

Sim. Todo instrumento é anti-anatômico. Se você vai tocar sem a técnica, vc se fode e pode ficar aleijado. Mas mesmo que tecnicamente correto, seu corpo ganha lesões muito específicas, tendinite, LER, etc. Como a gente sempre faz um pouco além do recomendado, acaba se fodendo. Ou mesmo trabalhando normalmente, ganhamos uma lista de doenças e riscos à saúde, que motivaram o PL 1714/209/06/2011 que provê 20% de aumento a todos os músicos a título de insalubridade [link - com lista de doenças de músicos].

Música dá tanto prazer que a gente consegue ignorar a dor do excesso (link). Não é porque tudo tem limite não (inclusive seu corpo), é porque os instrumentos não se adaptam ao seu corpo - é você que tem que fazer o possível pra adaptar seu corpo a eles. Daí nascem as deformidades dos instrumentistas - das quais acho algumas belas, como mão de pianista.

Eu toco theremin, e tenho um blog sobre isso: http://teremin.blogspot.com/ Nem mesmo um instrumento invisível e impalpável é anatomicamente adequado: minha mão direita está com os dedos tortos e os braços ficam terrivelmente cansados. É semelhante a lesões de maestro. Lembro de uma amiga regente que quando começou a reger ficou com os bíceps enormes - sem deixar de ser super feminina, é claro. Ah, é só balançar os braços no ar em ambos os casos? Vai crendo...

Mas fiquem tranquilos, não são apenas os instrumentos e atividades musicais que são anti-anatômicos. Fenômenos naturais inevitáveis como a morte e o parto são anti-anatômicos também - este último tanto pra mãe quanto pra criança.

Mas voltando ao masoquismo dos músicos, que é o assunto desse post, querem saber uma forma de comprovar se alguém é músico de verdade? Pergunte-o se, hipoteticamente, tivesse que escolher entre ser completamente cego e completamente surdo, o que seria pior. Músicos sempre responderão que é pior ser surdo, e prefeririam, hipoteticamente, a cegueira total. Os demais seres humanos não-músicos dirão que é melhor não ouvir e continuar enxergando. Eu prefiro morrer do que perder a audição, sinceramente.

DEPOIS dessa introdução piegas, vamos desenvolver o assunto desse post. Vou começar com uma idéia.

O corpo deve servir à música. Não é a música que serve ao corpo.

Existem instrumentos, peças e atividades musicais que são verdadeiros atentados à saúde humana em todos os sentidos. Não quero nem me deter aos casos de loucura e demência causados por sons (sim, eles existem). Vou focar na parte muscular e óssea mesmo, e na saúde em geral (mental e fisiológica), em como a música pode foder isso tudo e ainda deixar o gostinho de "quero mais" na gente.


1) CARRILHÃO (ou órgão de sinos)

O carrilhão consiste em um conjunto de sinos de igreja, enormes, ligados a um mecanismo de alavancas que permitem você tocar os sinos como um órgão. Só que tudo é muito pesado, então o "console" consiste em bastões de madeira (ou metal) em que você dá socos com o punho serrado, então através de cabos de aço essas alavancas balançam os sinos. É realmente de deixar a mão e o punho roxos ou em carne viva, em alguns momentos. Leiam a seguinte matéria, sobre uma carrilhonista brasileira (sim, uma moça delicada tocando esse instrumento de brutamontes) em que ela confirma o que eu acabo de dizer:
http://www.folhasinfonica.com.br/materias.asp?id=99

Assistam a Olesya Rostovskaya, carrilhonista russa, tocando uma composição dela em um carrilhão pleno. Os pedais tocam os sinos mais graves:


Se quiser ver um concerto completo, mais virtuoso, com tudo que é possível fazer num carrilhão, acesse:
http://www.youtube.com/watch?v=i13yIWb96WA

Vale a pena assistir também o leve concerto para carrilhão e orquestra do Purcell:
http://www.youtube.com/watch?v=y4jG3pmGA2Q

Também tem um cartoon sobre a origem do carrilhão, muito divertido:
http://www.youtube.com/watch?v=4eTmwLD9MEs


2) PIANO: glissandi e clusters

Qualquer um sabe que o piano maltrata grandemente os músicos. Vamos começar falando do glissando: quando o pianista passa os dedos sobre o piano arrastando em todas as teclas muito rapidamente. Glissando com qualquer mão e em qualquer sentido sangra, deixa o dedo em carne viva e em alguns casos arranca a unha dos músicos. Já vi virtuosos e mestres em piano dizendo que não tem como evitar isso, é só pensar na música e evitar pensar no sofrimento, que sai... se as teclas encherem de sangue, costuma ficar uma flanelinha dentro do piano, você enxuga e limpa o sangue durante as pausas.

Você deve estar pensando "ah glissar de vez em quando não mata ninguém". Pois bem, muitas vezes os pianos de concerto são mais duros do que parece; e mesmo que todos os bons pianos fossem super moles, a ponta dos dedos não foi feita pra passar numa velocidade altíssima sobre as teclas, que são simplesmente mecanismos de alavanca. Ora bolas, teclas são alavancas, devem ser pressionadas de cima pra baixo, e não lateralmente, como num glissando.

Vou dar alguns exemplos. Durante o Concerto para a Mão Esquerda de Ravel o pianista deve glissar várias vezes da primeira à última tecla branca do piano em menos de 2 segundos utilizando a unha do polegar esquerdo. Eu já sangrei muito tentando tocar essa peça. Mas o pior é quando tem glissando em oitavas, ou seja, duas notas (ou mais) que devem ser arrastadas por uma mão apenas - no caso das oitavas, uma nota fica no dedinho mínimo e a outra fica no polegar, e, sim, os pianistas são forçados a arrastar o dedinho mínimo contra as teclas do piano sangre o que sangrar. Exemplo, o Cziffra tocando sua peça "Fantasia sobre William Tell", no compasso 49, que aparece na tela aos 4:44; e também no compasso 84, que vai na tela aos 5:52, tem um glissando de acordes na mão esquerda:
http://www.youtube.com/watch?v=0PyenH1JH38

Outro exemplo: em La Fantaisie Roumaine, uma passagem inteira de glissandos múltiplos na mão direita, do compasso 86 ao 88, a partir de 2:13:
http://www.youtube.com/watch?v=Yr4drXNaTkE
Kurtag fez uma peça infantil composta apenas de glissandi leves e lentos, que, se não for tocada num piano delicado e leve, é auto-mutilação na certa:
http://www.youtube.com/watch?v=pLbx5aSVEfM


Mas só os glissandos são a crueldade do piano? Não, não. Além de dar LER, tendinite e ser uma manicure sanguinária, o piano pode quebrar seu braço com clusters. A seguinte peça, segundo o livro Música de Invenção de Augusto de Campos, pede para se ouvir o impacto dos ossos do pianista, que deve tocar ffffff (para quem não é músico, quer dizer forticicicicicíssimo). Sim, o músico é instruído pela partitura a socar seu antebraço contra o piano até que a platéia ouça o barulho dos ossos rangendo. Eu toquei essa peça em 2010 na faculdade, meu braço ficou doendo 3 dias, fiquei com vários hematomas mas o roxo saiu rápido, e tive cortes no pulso e nos cotovelos. As mãos ficaram vermelhas por horas, pois clusters com a palma da mão doem pra caramba quando tem que sforzare (vejam a partir de 2:05):

Obs: novamente, isso é obra de uma mulher. A compositora se chama Galina Ustvolskaya, super feminina lá com sua saia cristã e seu braço malhado. Chamada popularmente de a "dama do martelo". Apelido super doce né? rsrs


3) TÓXICOS e interações com fumaça, fogo, armas, etc.

Esses elementos não são essencialmente musicais, tudo bem. Mas são comumente usados na música e em muitos casos são indispensáveis. Muita gente que participa de coral de ópera passa mal por inalar aquela fumacinha cenográfica tão comum no teatro.

O pianista japonês Yosuke Yamashita fez duas vezes um espetáculo em que ele improvisa jazz um piano enquanto o piano pega fogo. A primeira vez foi em 1973 numa floresta, para um filme do diretor Kiyoshi Awazu que está disponível nesse link o filme completo. A segunda vez, em 8 de março de 2008, numa praia japonesa, durou uns 10 minutos. Segue vídeo-notícia da performance:
http://www.youtube.com/watch?v=a7C8I_3HHaQ


Além das óbvias queimaduras leves que ele pode ter sofrido, tem toda a toxina da fumaça inalada, que é o que me preocuparia mais. Ele queria tocar até o piano parar de funcionar, mas tudo acabou se tornando numa batalha de vida ou morte, ser humano versus instrumento (fonte).

http://www.allmusiq.com/wp-content/uploads/2009/01/pianoer9.jpg

Não poderia deixar de mencionar diversas vezes em que é necessário para a música o uso de armas de fogo, produzindo aqueles barulhos ensurdecedores. O caso mais famoso é a Abertura 1812 do Tchaikovsky, que requer pelo menos 4 canhões (sim, canhões) atirando durante a música, foda-se o ouvido de quem estiver perto, canhões a partir de 7:50:
http://www.youtube.com/watch?v=0F5k70xwGSk
Isso ainda é menos ensurdecedor do que o som de uma festa rave ou uma boate ou um forró. Odeio som alto.

4) RITUAIS e encenações musicais

Se você não é músico, deixa eu resumir a história: na música "clássica" a partir do século XX, alguns rituais e encenações passaram a fazer parte da música, sendo impossível executar apenas sons. Nesses casos, os sons não fariam sentido musical por si mesmos, sem o ritual ou encenação.


Talvez o exemplo mais cruel disso seja a peça Goldstaub (Pó de ouro) de Stockhausen. Ela dura 4 dias e 4 noites, deve ser tocada por um conjunto de 3 ou 4 músicos. Nos 4 dias os músicos devem ficar em quartos separados, isolados, sem nenhuma comunicação, sem comida (apenas tomando água ou no máximo suco), com os ouvidos protegidos para não ouvir nenhum som, e evitando gerar qualquer som. Devem evitar se concentrar, ou seja, "não pensar em nada", devem evitar se mover, ficando a maior parte do tempo deitados como mortos; todavia, devem evitar também o sono, dormindo apenas o mínimo possível. É o tipo mais radical de meditação e limpeza mental que eu já vi.

Após 4 dias completos nesse ritual de preparação, bem tarde da noite do quarto dia, os músicos se encontram, SEM NENHUMA COMUNICAÇÃO, cada um pega seu instrumento, e sem combinar nada, começa a tocar sons simples e isolados, sem pensar no que estão tocando. Devem fazer isso de olhos fechados e percebendo auditivamente todo o som produzido por eles, mas sem se concentrar em QUE SOM seria esse, sem pensar em qual será o próximo som a tocar, etc. Ou seja, a tortura da meditação extrema não acabou.

Além de ficar uns 5 kilos mais magros, os músicos vão ter a sensação de ouvir pó de ouro caindo do céu, devido aos 4 dias de preparo, seja lá qual for o instrumento. A "limpeza espiritual" promovida por esse ritual faz com que os sons pareçam visíveis e palpáveis, e mesmo o músico conhecendo bem o som do seu instrumento, após os 4 dias de preparo vai parecer que é uma coisa mágica, de outro mundo, que ele nunca ouviu antes. Eu gostaria muito de tocar essa música, mas não achei outros 3 músicos pra participar comigo. Eu tenho experiência com longos jejuns e anorexia em geral, creio que o mais difícil mesmo seria ficar sem pensar, sem se mover e sem se comunicar. A propósito: numa música como essa, não existe público, pois apenas os músicos, que passaram por todo o processo de 4 dias, é que vão entender o sentido musical ali, pois a preparação é parte da música e gera a percepção sonora necessária para tocar/apreciar o "pó de ouro". Link para uma performance ao final do quarto dia: http://www.youtube.com/watch?v=l1jp3HibWAQ

Um outro ritual bem forte acontece no Concerto para Zheng e orquestra de cordas, do compositor chinês Tan Dun. Durante a peça a orquestra toda deve latir como se incorporasse espírito de cães e lobos, e no final, como num ritual xamãnico, todos menos o maestro ficam possuídos e começam a se debater, tocar sons desconexos e latir violentamente. Elementos da cultura chinesa, tibetana e indígenas americanas se misturam com a tradição de concerto européia. Assistam:


Em ópera a oposição dramática (o Mal ou o vilão) costuma ser representado como "satan", mesmo quando o cunho não é nada mitológico nem religioso, só pra se aproximar mesmo da cultura cristã e para aumentar a carga emocional da coisa (fonte). Aí em alguns momentos é muito normal o teatro da ópera envolver rituais "reais". Por exemplo, na ópera Un ballo in maschera de Verdi, no ato 1 cena 2, a Ulrika, uma bruxa negra contralto, sacrifica literalmente uma galinha no palco do teatro enquanto invoca o Rei do Inferno:

Obs.: Se você come frango, não tem moral de condenar alguém que, na umbanda, mata galinhas ritualmente.

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CONCLUSÃO

Amiguinhos, depois dessa reflexão, voltem à frase destacada lá em cima. O músico não é servido pela música, pelo contrário, ele serve à música com o seu corpo e sua vida se for preciso. O que os compositores pedirem, eu faço, se estiver musicalmente convencido. Volto a pocar meus dedos e braços no piano sempre que possível, pois a música como um todo compensa!

E viva à música!