quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Son qual nave

Baixou a pombagira aqui, e resolvi comparar três performances excelentes da ária barroca "Son qual nave" (sou como um barco). Resolvi exagerar bastante, para incitar ódio, digo, debate. :)

Vou nomear e ordenar assim as performances: a virtuosa, a perfeccionista e a extrovertida, e vou deixar pro leitor fazer o juízo final.

A ária faz parte da ópera Artaserse (1734), e foi escrita por Riccardo Broschi para seu irmão, o famoso castrato Farinelli. A partitura está disponível aqui:
http://imslp.org/wiki/Artaserse_%28Broschi,_Riccardo%29

Quem disse que "gosto não se discute" está equivocado: gosto se discute sim, mas não se impõe; cada um possui o direito de pensar diferente, assim como o dever de justificar seu pensamento em situações de diversidade. Só assim nos tornamos pessoas plenas. Xingue-me nos comentários.

A VIRTUOSA


Cecilia Bartoli, mezzo-soprano coloratura italiana, nesse vídeo pega da capo e surpreende na primeira cadenza sustentando uma nota por 25 segundos, brincando com ressonância e terminando em coloratura do C#6 ao F#4. Needless to say, o público vai ao delírio. O aproximar e afastar da voz, na sustentação recordista, lembra um barco oscilando. Aqui, a voz é um instrumento, assim como o violino de Paganini. Após os aplausos eufóricos, ela se diverte exibindo mais de sua pirotecnia vocal. As notas graves possuem o mesmo peso, volume e agilidade das agudas: impossível não ficar impressionado. A voz muito leve/pequena aliada a um controle quase mágico nos faz duvidar dos nossos ouvidos. A aparência muito imponente, tanto pelo grande porte físico quanto pelo olhar de águia, reforçam a sua presença de palco. É o tipo de performance de cair o queixo e pensar "será que ela é humana?". Engana-se quem pensa que, por ser italiana, teria proveito quanto ao idioma do texto: ela nem sequer se importa com o mesmo. No contexto, que é um bis apresentado ao final de um recital, ela opta pela afinação antiga, meio tom abaixo da atual. Pouco é feito em termos de nuance de dinâmica e articulação durante as coloraturas: os trinados são pouco diferenciados, e, talvez pela voz pequena e leve, tudo se resume a uma rajada de tiros. Um assassinato do fraseado. Quem precisa de fraseado quando se possui o fôlego e o apoio respiratório dos castrati, a agilidade de um raio, a extensão de uma mezzo coloratura e o fascínio de uma diva? Afinal, ninguém compra essa performance pelo fraseado ou pelas expressões sutis - isso fica pras outras.

A PERFECCIONISTA


Julia Lezhneva, [mezzo] soprano coloratura russa, faz o tipo que não faz sequer um vibrato sem pensar. Ela pensa cada passo que dá. Uma aparência menos imponente, bastante sorridente, de uma figura meiga e tipicamente donzela não deixa transparecer tanto a concentração extrema e o detalhismo da performance. Da primeira à última frase, cada articulação e dinâmica é premeditada. O colorido da voz, aqui, importa muito. Estamos lidando com outra rainha da agilidade, porém com um foco diferente na performance, onde equilibra-se doçura e maravilha. É o tipo de performance para suspirar, respirar fundo e suspirar de novo. Há mais comunicação com o acompanhamento, mais diálogo expressivo com a obra em si, menos voz "cinza", digo, menos reduzida a movimentações de sobe-desce (ou de agita-acalma), enfim, transcendendo a técnica. Assim, a forma fica clara, até mesmo para o apreciador "leigo". A clareza formal é ótima para uma obra originalmente dramática. A questão é: tanta sutileza não estrapola algum limite e "adocica" demais a ária? A dedicação da intérprete em dominar todos esses detalhes não evita que ela realize expressões espontâneas essenciais? não a torna menos convincente? Pecar pelo excesso, no final das contas, pode ser o mesmo que pecar pela falta. Mas será que aqui houve tal pecado?

A EXTROVERTIDA


Simone Kermes, [mezzo*] soprano coloratura [dramática] alemã, causa polêmica pelos seus movimentos corporais constantes. Parece ser o jeito dela relaxar no palco e manter uma regência corporal, tanto de si mesma quanto da orquestra. Esse atletismo deve queimar muitas calorias. Aliando isso ao seu visual nada convencional para uma cantora de ópera, semelhante a uma pop/rock star, ela possui uma grande presença de palco, gerando questionamentos, especialmente dos mais conservadores: a aparência e a corporalidade afetam negativamente a música ou o concerto em geral? Vamos nos deter ao som: ela utiliza extensão mais ampla dentre as citadas, do G3 ao D6, e demonstra domínio técnico consciente enquanto realiza sua leitura da obra, porém não revela tanto cuidado com a sonoridade. Respira em pontos inexperados, como antes de "mar" no "fine" antes da seção contrastante (3:04). É o tipo de performance que faz a gente enxergar a obra por ângulos diferentes ("como eu não pensei nisso antes?"), mas não permite viajar no texto, apesar da excelente dicção. Refrescante e empolgante ao mesmo tempo. A grande forma é quebrada em pequenos momentos mágicos: cada evento é igualmente importante para Simone. Uma intérprete que não aparenta estar presa ao palco e engessada em formalidades do estilo é como um grito de liberdade, a sensação de improviso mesmo que se faça "apenas" o que está escrito (obviamente com expressões bem particulares). Os estímulos visuais podem ser vistos como complemento, enriquecimento, distração ou até mesmo ruína da música - depende do público. O que você acha?

*em alguns contextos kermes se apresenta/identifica como mezzo, exemplo: http://www.youtube.com/watch?v=iC0XRDImB8I

***

Qual a melhor das três? VOCÊ DECIDE.

Por mim, todas as três são excelentes, e eu pagaria *rindo* pra assistir qualquer uma. Qual me agrada mais? Depende do dia. Há dias de desejar a virtuosa, há dias de desejar a perfeccionista, há dias de desejar a extrovertida. Lembrem-se que exagerei aspectos chamativos delas apenas para finalidade didática.

Sinceramente, não ouso preferir terminantemente uma às demais. Não vejo necessidade de taxar uma delas de melhor e as demais como inferiores, afinal, todas são artistas admiráveis e se mantém fiéis à obra em seu texto original, apesar dos requintes pessoalíssimos saltarem aos olhos de um público entediado.

Assim como há diversidade de interpretações, eu acredito na diversidade de experiências de apreciação. Ninguém ouve uma obra musical da mesma maneira duas vezes seguidas - mesmo que com os mesmos intérpretes.

Mas esse post foi em vão - nos comentários do youtube, odiadores vão odiar. Fans, digo, os admiradores fanáticos, podem dar belas lições de brutalidade nas mais finas artes. Nenhum pouco melhor do que uma briga de torcidas organizadas de futebol carioca.

ENTÃO, PORRA, PAREM DE ENCHER MEU SACO SÓ PORQUE EU NÃO FICO IDOLATRANDO UMA CANTORA ESPECIFICAMENTE, E ODIANDO AS "CONCORRENTES".